Hangares, “terra de ninguém”

Durante a Primeira Guerra Mundial, o pequeno enclave na Ilha da Culatra foi um centro de aviação naval destinado à luta anti-submarinos. Depois, passou para o domínio da Marinha Portuguesa. Hoje, apenas permanecem as memórias e o arame farpado.

Texto, fotos e vídeo Joana Madeira Pereira

A chegada aos Hangares não é direta. É preciso desembarcar na ilha do Farol ou na ilha Culatra. Estamos a falar exatamente da mesma ilha, mas isso é indiferente aos algarvios e residentes da Ria Formosa, que não fazem caso da rigidez dos mapas e preferem navegar segundo as suas próprias coordenadas sentimentais — na cabeça destes, há mais ilhas do que aquelas que, na realidade, existem.

Chegados ao cais, e se a maré estiver a vazar, pode caminhar-se pelo areal da Ria Formosa uma boa meia hora, em direcção ao ponto central da ilha. É aí que ficam os Hangares. Se a maré estiver cheia, custa mais. É preciso chegar à costa e, aí sim, alcançar o núcleo 'hangrense'.

Apesar de a povoação dos Hangares possuir o seu próprio cais, não há carreiras de barcos vindas de Olhão e de Faro que ancorem por aqui. De vez em quando, o barco privado do Hotel Real, de cinco estrelas, que há uns anos se instalou em Olhão, deixa alguns turistas. Mas nada que perturbe a pacatez do lugar.

Os Hangares podiam ser a “terra de ninguém”. Percorrendo o areal voltado para a Ria, o cenário não podia ser mais inóspito. E surpreendente. Sobretudo para quem vem fazer turismo e praia. As vedações feitas de arame farpado têm uma extensão de vários quilómetros e rodeiam o aglomerado de casas dos Hangares.

Parte destas vedações cedeu à força da água, que nos últimos anos tem vindo a ganhar terreno ao areal. Estão prostrados por terra. O arame farpado esconde-se na areia, à espera dos pés mais incautos.

São poucos os que ouviram falar dos Hangares, mas este povoado tem muito mais história do que as praias algarvias entupidas de turistas no pico do verão.

Já a Primeira Guerra Mundial se encaminhava para o fim quando os franceses viram, mesmo no centro da ilha da Culatra, a base ideal para um centro de aviação naval. O areal extenso, ainda desabitado, era perfeito para a aterragem dos hidroaviões gauleses que serviam de apoio à luta submarina. É à construção de dois hangares de alvenaria, de frente para a Ria Formosa, que esta povoação deve o seu nome. Se bem que, hoje, os vestígios destas edificações sejam quase inexistentes.

Logo no final do conflito mundial, em 1928, ali montou a sua barraca de apoio à pesca 'Ti' Zé Lobisomem. O pescador haveria de fixar aí residência dez anos depois. Chamam-lhe ainda hoje o “pioneiro”. Outros familiares se juntariam a ele, nos anos seguintes.

Mais tarde, em 1938, e depois de vários anos de inatividade, o Ministério da Marinha português alugou estas instalações à Junta Autónoma de Portos do Sotavento do Algarve. Passaram a servir de centro de armazenamento do carvão usado na drenagem das águas.

Já então conhecida como o sítio dos “Hangares”, estabelece-se aí a Guarda Fiscal, que passa a controlar a ilha. Os guardas, conhecidos como “pica-chouriços”, controlavam o contrabando que chegava pelo sul a Portugal. Traziam as suas famílias e habitavam nas casas que, hoje, estão em ruínas.

Nos anos de 1960, o Ministério da Marinha cria um campo de treino de inativação de explosivos e de demolições, conhecido como o polígono de tiro da Culatra. Toda a zona foi vedada com arame farpado.

Durante décadas a fio, os exercícios de detonação de explosivos eram feitos na costa, mesmo em frente ao povoado dos Hangares, que já tinha algumas barracas de madeira pertencentes a famílias de pescadores.

A esta povoação chegavam navios da Marinha, que deixavam os explosivos para os exercícios dos fuzileiros navais. Em 1998, o polígono de tiro da Culatra foi abandonado. Mas o arame farpado ficou.