ANTES E DEPOIS A paisagem nas ilhas-barreira da Ria Formosa já não é a mesma. No ilhote do Côco, perto da ilha da Culatra, as casas já foram abaixo FOTOS DR

O mar leva sempre a melhor

A construção nas ilhas-barreira da Ria Formosa, que protegem a costa algarvia, foi feita à revelia de qualquer planeamento. Com o avanço do mar, os riscos ambientais cresceram.

Texto, fotos e vídeo Joana Madeira Pereira

N a Primavera de 2010, o mar pregou o primeiro susto. Vagas de seis metros deitaram por terra grande parte das habitações clandestinas da Fuzeta. A natureza encarregou-se de criar uma barra marítima natural onde antes estavam as casas de férias de muita gente. Foram precisos milhares de toneladas de areia para travar a força do mar e a conclusão foi óbvia: era preciso demolir as casas que sobreviveram à força das ondas, já que a natureza há-de levar sempre a melhor sobre o homem.

Uma viagem nas carreiras de barcos que, todos os dias, cruzam a Ria Formosa para transportar os habitantes e visitantes destas ilhas até Olhão e Faro mostra o evidente. Além do considerável caos da construção (com casas em cima umas das outras, muitas erguidas em sítios proibitivos e quase todas construídas à base de uma mistura entre madeira, alumínio e cimento que aconselha a maior sintonia estética), o areal junto à Ria, na maré cheia, desaparece. E as casas que assentam sobre as dunas têm água a chegar-lhes ao pátio.

À construção desenfreada no litoral português veio associar-se, nas últimas décadas, o avanço do mar. Que não ficará por aqui, já que vários estudos indicam que, em média, até ao fim do século, o mar poderá subir 82 centímetros. Outras investigações apontam para valores mais elevados. É por isso que Carla Graça, da Quercus — Associação Nacional de Conservação da Natureza, se congratula com o novo Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC). “Durante anos a fio, as autoridades locais licenciaram casas, em condições absolutamente absurdas, só porque isso lhes garantia receitas chorudas. Foram coniventes com a construção desenfreada e com o desgaste da orla costeira durante estas últimas décadas ”, diz.

O equilíbrio deste ecossistema, classificado como parque natural, é periclitante. E o seu sistema lagunar é suporte de atividades económicas de relevância para esta região. Sendo Ria de nome, a Ria Formosa não é o na sua natureza. É, na verdade, um sistema de lagunas. Não foi o mar que entrou na zona costeira e a afundou, criando um vale, a que cientificamente se convencionou chamar ria. Estas ilhas de areia formaram-se sim no mar, desde a última glaciação. Estão em constante movimento em direcção ao continente. E nos anos vindouros hão-de obrigar a costa continental a recuar. Formam uma laguna com mais de 60 quilómetros de extensão (desde o rio Ancão até à Manta Rota, em Vila de Santo António).

Deste sistema fazem parte uma grande diversidade de habitats: ilhas-barreira, sapais, bancos de areia e de vasa, dunas, salinas, lagoas de água doce e salobra, áreas agrícolas e matas.

A Ria Formosa existe há apenas uns milhares de anos e não durará mais do que outros tantos. Daí a sensibilidade de um sistema que não para e é altamente dinâmico. As suas movimentações são visíveis no período de uma década: há zonas de areal que estão a minguar perigosamente, como o caso da Fuzeta. E outras que estão a ganhar mais areia, como a Armona, onde é preciso caminhar até ao horizonte para atingir a costa. E estamos a falhar da mesma ilha...

Erguer aldeias ou quase cidades de betão (como é o caso de grandes aglomerados de construção, como a Armona, com mais de 1000 edificações) tem o seu preço. A Fuzeta já sabe qual é.

“As construções a demolir no âmbito do Polis Litoral Ria Formosa são construções clandestinas em Domínio Público Marítimo, numa zona protegida, e que são, na sua maioria casas de férias e de fim de semana, com ocupação sazonal. A sua existência e o constante pisoteio fragilizam os cordões dunares, por um lado, e impedem a dinâmica natural do sistema, por outro”, justifica o Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia (MAOTE).

61% das casas na Ria Formosa são ilegais Durante anos a fio, a mera invocação do projeto Polis Ria Formosa fazia tremer os habitantes e proprietários das casas nas ilhas-barreira. Mas ainda eram poucas as definições sobre as casas que seriam demolidas. Hoje, a nebulosa continua. Muitos proprietários continuam a questionar o critério de escolha das construções a serem demolidas.

“Mas há alguma razão para estas casas serem ilegais, quando na Culatra e no Farol legalizaram grande parte das casas?”, questiona-se Manel Café, que há 20 anos faz dos Hangares a sua morada quase permanente. “Não fossem as idas ao médico e os problemas de saúde e estaria cá todo o ano. Mas a partir de março-abrill, com o calor, já está bom tempo para vir para aqui”, conta este reformado, de 74 anos.

Um levantamento feito pelo Parque da Ria Formosa, há uma década, dava conta da existência de 2.659 edificações nos cordões dunares e ilhas daquela zona. Dessas, 1.631 (61%) eram ilegais. Ocupavam áreas de domínio público hídrico sem nunca terem sido autorizadas a tal.

O cenário atual não é muito diferente daquele traçado no início dos anos 2000. Assim como não é distinta a variedade de habitações que proliferam nestas ilhas. Há de tudo. Umas são construções que nasceram a partir dos núcleos piscatórios aí existentes há centenas de anos mas que não são autorizadas. Outras edificações foram erguidas apenas com o intuito de proporcionar férias no verão. Há ainda habitações ilegais que até estão longe do mar. E outras que, tendo sido autorizadas, estão plantadas nas primeiras dunas, junto à praia, em zonas consideradas de risco.

“Então, mas faz algum sentido isto! Os Hangares ficam na faixa da ilha da Culatra que é mais larga. Temos de andar 800 metros até chegar à costa. Nos outros lados da ilha não é assim, há muito menos areia. E é a nós que nos querem tirar as casas?”, exalta-se Manuel Café.

Sabe que a sua casa é ilegal, mas não entende porque há de ir a sua abaixo, enquanto outras vão continuar de pé noutros pontos da ilha, no núcleo da Culatra e Farol Nascente. “Nós não estamos a fazer nenhum mal. Só estamos ilegais. Não se há de resolver esta situação porquê?”

O sentimento de injustiça cresce quando se fala da ilha vizinha. Em 1983, o Governo concessionou à Câmara Municipal de Olhão uma parcela da Armona, dando-lhe direito de uso privativo de uma área do domínio público marítimo. Desta forma, a entidade camarária passou a ceder terreno a privados mediante o pagamento de uma contribuição autárquica anual. E a construção manteve-se. Ao ponto de, hoje, a Armona ter mais de mil casas, separadas por pequenos corredores tortos e sinuosos. É, de longe, um dos maiores aglomerados de construção.

Os líderes dos municípios de Faro e de Olhão têm mostrado a sua oposição ao processo de renaturalização. Fonte do gabinete do presidente da Câmara de Faro, Rogério Bacalhau, afirma: “Não temos conhecimento de quaisquer riscos quer em termos de erosão, quer em matéria de natureza ambiental” que justifiquem a demolição das casas. “Não vemos motivo para ocorrerem demolições. A justificação prende-se com o facto de se considerar que as referidas casas estão ilegais”, continua.

Também o presidente da câmara de Olhão, António Pina, já declarou que as demolições apenas vão ocorrer por motivos que nada têm de ambientais. E, por isso, defende a desafetação do Domínio Público Marítimo das casas ilegais nos Hangares, Farol e Culatra. “Não é um problema ambiental, mas sim um problema de legalidade”, assevera. Por isso, sugere que, à semelhança do que já aconteceu numa parte do Farol, se criem mais perímetros desafetados, argumentando que a legalização destas habitações levaria os proprietários a terem de cumprir com os impostos.

Dragagens antes das demolições Nos Hangares, como nos restantes núcleos populacionais da Ria Formosa, questiona-se porque razão decidiu o MAOTE, no âmbito do programa Polis Litoral, avançar com as demolições antes de lançar outras intervenções “mais urgentes”. Sobretudo operações de dragagem, que aqueles que conhecem a Ria Formosa dizem ser necessárias para a maior oxigenação do ecossistema e para a segurança dos pescadores: “Há anos que lutamos pelo desassoreamento das barras. A falta de limpeza dos seus fundos, como na barra do Lavajo, em Olhão, tem provocado muitos acidentes com embarcações e até já levou à morte”, acusa Teresa Duarte, presidente da Associação dos Moradores do Núcleo dos Hangares.

Fonte do MAOTE conta que as demolições correspondem apenas a 18% do orçamento do Polis Litoral e que já muitas outras intervenções foram feitas antes, como a reconstrução de vários cais de acostagem, a edificação de marginais e de parques ribeirinhos. A necessidade de uma “intervenção integrada” obrigou ao desenvolvimento de “estudos complexos”, o que fez com que, “só agora, depois de ultrapassado o processo de avaliação de impacte ambiental, seja possível iniciar a maior parte das dragagens”.

Já foi executada a primeira fase da dragagem da barra de Tavira e “está prestes a iniciar-se” a segunda fase, que “aguarda o visto do Tribunal de Contas”. As empreitadas de dragagem do canal Faro-Olhão e da Barrinha do Ancão-Esteiro do Ramalhete “estão em assinatura de contrato”, enquanto a da barra da Armona “está em adjudicação”.