NÃO VAI FICAR NADA DE PÉ A maioria das casas do núcleo dos Hangares, na ilha da Culatra, serve de morada em tempo de férias. Mas outras são o lar de pescadores e mariscadores

Um dia a casa vai abaixo

Na pequena povoação dos Hangares, perdida na Ria Formosa e cercada a arame farpado, os moradores têm o coração nas mãos. Até ao final de maio, as 159 habitações, todas ilegais, vão ser demolidas. Desaparece um pedaço (desconhecido) de História.

Texto, fotos e vídeo Joana Madeira Pereira

Desta, parece que é de vez. Já pareceu também de outras vezes, mas agora aconteceu algo que nunca havia acontecido: Rosa Maria recebeu uma carta com a data fatídica. No próximo dia 11 de maio, terá de entregar a casa que há mais de 20 anos lhe serve de morada quase permanente naquele pequeno aglomerado de casas ilegais em plena ilha da Culatra: chamam-lhe Hangares, por razões que a História se encarrega de contar (e que lhe narramos mais adiante), e está prestes a desaparecer — a bem do Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) da Ria Formosa, que prevê, até ao final de 2015, a demolição de 794 habitações ilegais plantadas nas chamadas ilhas-barreira do litoral algarvio, entre Vila Real de Santo António e Vilamoura.

“Sem os 'Hangâres' e a minha casinha, não sei o que vai ser de mim. Dói-me o coração. Ai, isso vai ser a minha morte”, diz Rosa Maria, de 66 anos. A sua casa vai abaixo e nenhuma outra ficará de pé. Nem mesmo a casa de madeira amarela que se destaca na rua principal deste lugarejo e onde uma placa indica que foi esta a morada do pescador 'Ti' Zé Lobisomem, o primeiro habitante dos Hangares, a partir de 1928. Os familiares seguiram-lhe o encalço. E outros tantos que, a partir dos anos 70, decidiram ocupar os seus terrenos e erguer edificações.

Desde o final do ano passado, já foram desmanteladas na Ria Formosa 257 construções e a outras 25 removidos os telhados, segundo o balanço que o Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia (MAOTE) faz ao Expresso Diário. As demolições já limparam a paisagem dos chamados Ilhotes (Ramalhetes, Cobra, Côco, Altura e Ratas) e Deserta, nos concelhos de Faro e Olhão. Na Península do Ancão, dividida entre Faro e Loulé, a primeira fase de destruição já derrubou 112 casas; ficam a faltar 113 primeiras habitações, enquanto não forem resolvidas as situações de realojamento.

Mas ainda há uma réstia de esperança. Hoje mesmo, 27 de abril, deveriam ter sido entregues 217 habitações ilegais no núcleo Farol Nascente ao programa Polis Litoral Ria Formosa, encarregue da execução do POOC. Contudo, na última sexta-feira, o Tribunal Administrativo de Loulé aceitou 134 providências cautelares interpostas pelos proprietários de casas. Desta forma, a Polis está impedida de tomar posse administrativa das habitações, condição necessária para a sua demolição. Em 10 dias, a Polis terá de apresentar argumentos ao Tribunal. Só depois disso, é que haverá uma decisão final quanto ao destino daquelas casas.

Nos Hangares, respira-se fundo. O dia 11 de maio aproxima-se, é a data marcada para as demolições começarem. Mas, ainda que se diga que é possível parar o programa de demolições, parece que há algo definitivo. Está em curso a renaturalização da Ria Formosa e nos Hangares, assim como outros pontos destas ilhas algarvias, e ninguém se conforma.

Rosa Maria não terá direito a ser realojada, visto a pequena habitação branca e vermelha onde vive com o marido ser considerada segunda residência. Foi isto que lhe foi explicado em várias missivas que recebeu desde o início de 2014. Como tantos outros habitantes desta povoação da Ria Formosa, tem casa em Olhão. Mas já não sabe lá estar. “Nos 'Hangâres' é que eu estou bem”, diz. Passa cá parte do ano, só vai “a terra” quando tem de fazer compras ou cuidar da mãe, que está acamada. Apesar deste enclave pertencer ao concelho de Faro, as ligações afetivas e os afazeres diários decorrem em Olhão: é aí que se abastacem os habitantes das ilhas e os mais novos vão à escola.

Hangares, porque já ali aterraram hidroaviões franceses no final da 1ª Guerra Mundial; mas 'Hangâres', porque o sotaque algarvio leva sempre a melhor e ninguém quer saber de razões históricas. Hangâres, “os meus 'Hangâres'”: aqui, fala-se com o coração. Que quase todos têm, agora, nas mãos.

Realojamentos em curso O objetivo do programa Polis para aquela pedaço de ilha é já há muito conhecido: a renaturalização. Regressar ao estado mais puro. “Estou para ver se, depois de nos mandarem embora, ainda põem aqui um 'resort' de luxo”, atira Florinda Pires Lopes, mais de 70 anos, que passa grandes temporadas numa casa que se enche, aos fins-de-semana e durante as férias, com os filhos e os netos. A mesma suspeita é partilhada por outros ocupantes daquele núcleo de moradores. Fonte oficial do MAOTE garante: “Não temos conhecimento de quaisquer projetos turísticos para as zonas a demolir e renaturalizar. De acordo com o previsto no POOC, estas áreas a renaturalizar irão integrar obrigatoriamente a categoria de espaço natural envolvente, onde são interditas todas as obras de edificação.”

A maior parte das habitações serve de residência de verão a quem vive e trabalha em Olhão e Faro. Mas os Hangares também são o refúgio permanente de três dezenas de pessoas, que ali moram o ano inteiro. Uns porque assim estão mais próximos do seu posto de trabalho, o barco de pesca ou os viveiros da Ria Formosa. Ou porque fogem do desemprego e ali sempre vão “matando o tempo”. Há ainda os mais velhos que enganam a inércia da reforma e o isolamento das cidades. Nos Hangares, todos se conhecem.

“Eles deviam mas é estar calados e não nos chatearem”, diz Zé Manel, o “Alentejano”, de 49 anos. Trocou o trabalho na terra pela vida no mar, dizem na ilha. Veio tomar a bica matinal ao café da Associação de Moradores dos Hangares. Diz que não tem outra casa além daquela que improvisou há anos naquela parte da ilha da Culatra: “Custou, mas foi.” Vai perder a sua horta virada para a Ria Formosa, onde “até couves nascem das nesgas do cimento”. Abana a cabeça: “Não sei o que vão fazer, só vendo. Nem que tenha de roubar uma casa a eles”, diz, referindo-se a uma entidade que não sabe nomear.

“Eles” são o MAOTE, liderado pelo ministro Jorge Moreira da Silva, mas também as câmaras de Faro e de Olhão. Segundo o ministério, o desmantelamento de primeiras e únicas habitações só será efetuado depois de todos os moradores serem realojados “em condições adequadas ao nível de rendimentos dos agregados”. Apesar do realojamento ser da responsabilidade dos respetivos municípios, “o processo tem vindo a ser acompanhado por uma comissão constituída pela Polis Ria Formosa, a Segurança Social e os serviços Sociais da Câmara Municipal de Olhão”, diz fonte do MAOTE. “Esta comissão tem apoiado os agregados mais carenciados na obtenção dos apoios sociais a que têm direito e a que não estavam a recorrer por desconhecimento da sua inexistência”, acrescenta.

Mais de €5,5 milhões em demolições Nos Hangares foram identificadas, numa primeira fase, 2 casas de primeira habitação; há, atualmente, mais 11 situações que estão em análise. No núcleo Farol Nascente, outras 2 habitações únicas também foram identificadas, mas há mais 3 casos a ser estudados; nos ilhotes há 7 habitações únicas; e na Península do Ancão estão identificadas 99 situações de primeira habitação, cuja demolição ficará para a segunda fase deste processo.

De acordo com as contas do MAOTE, as empreitadas das demolições em curso e as que estão previstas realizar até final de 2015 totalizam 4,65 milhões de euros, “a que acresce perto de 1 milhão de euros” das cerca de 70 demolições realizadas em 2010 na Fuseta (na Ilha da Armona), quando o mar galgou a terra e não se compadeceu das casas que ali alguém ergueu clandestinamente.

Teresa Duarte é a presidente da Associação de Moradores no Núcleo dos Hangares. Garante que, a 11 de Maio, nada de mais irá acontecer no quotidiano dos 'hangrenses': “Não vamos entregar as nossas casas. Não as vamos abandonar”, afiança. “Nós não queremos o realojamento, queremos é que não nos deitem as casas abaixo.” Na forja, os moradores deverão interpor, nos próximos dias, providências cautelares contra as demolições. A ver se acontece o mesmo que logo ali ao lado, no núcleo do Farol.

Mas não foram estas casas construídas clandestinamente? “As pessoas puseram aqui as suas economias. Temos aqui famílias inteiras a viver durante todo o ano, com postos de trabalho permanentes. São mariscadores e pescadores. Há ainda muitos reformados que continuam a ir ao mar. Não são pessoas que vêm passar férias. Isto é uma terra de gente trabalhadora, como é também a Culatra”, garante, defendendo a continuidade de um modo de vida.

Teresa tem estado presente em todas as formas de luta que os proprietários das casas das ilhas-barreira promoveram nas últimas semanas, desde marchas lentas de carro, pela Estrada Nacional 125, e de barco, pela Ria Formosa, passando pelas diversas manifestações frente à Assembleia da República, em Lisboa — e que culminaram, no início deste mês, com a expulsão de cerca de 300 algarvios das galerias do Parlamento, depois de gritarem palavras de ordem contra o chumbo das propostas de suspensão das demolições, apresentadas pela oposição. A maioria PSD/CDS-PP votou pela continuidade do processo de renaturalização. “Os ilhéus, unidos, jamais serão vencidos”, gritaram os manifestantes, alguns deles membros da plataforma de contestação “Je Suis Ilhéus”.

Rute Rodrigues, 36 anos, trata do café da Associação de Moradores. Por motivos de saúde, deixou o trabalho que tinha “em terra”, e passou a residir com a família nos Hangares. Veio para cuidar de uma senhora idosa que cá residia e lhe deixou a casa, em “agradecimento”. Aí vive com o marido, Francisco 'Cóqui', que faz biscates nos vários núcleos urbanos das ilhas, sobretudo pequenas reparações e obras em casas de verão; e com a filha Sofia, de 16 anos, que todos os dias vai a Olhão, à escola. “Aqui tenho o meu trabalho, que ganha-pão é que vamos ter depois? Não há trabalho em terra”, diz. E se um dia a sua casa for mesmo abaixo? “A vida continua, não é o que dizem? Mas vai ser muito mais triste.”