Mia Couto a comprar bananas numa venda de estrada nos arredores de Maputo

Essa cidade tão pequena onde os domingos "não eram notados" é a Beira que o viu nascer a 5 de Julho de 1955. Aí aprendeu a descodificar letras, bichos e plantas, e apropriou-se de uma sensação de liberdade - quase endémica - própria de quem vive em terras de África. Aí inventou o seu mundo interior habitado por fantasmas "solarentos", e deixou de ser chamado por António porque gostava do miar dos gatos.

O fim do Liceu e a entrada na Universidade obrigaram-no a mudar-se para Lourenço Marques, onde se inscreveu na Faculdade de Medicina: "Chumbei no 2.º ano. Nesse tempo, pertencia a uma pequena célula clandestina da Frelimo (Frente Libertação de Moçambique) que tinha dois rapazes e duas meninas." Uma das meninas era (a hoje médica) Patrícia que haveria de ser a sua segunda mulher. "Tínhamos muitas reuniões (de célula) na encosta dos Jardins dos Namorados, que era muito diferente de agora."

Nos anos mais turbulentos da guerra, esse espaço verde sobranceiro à aconchegante baía de Maputo, deve ter conhecido dias de abandono até ter sido recuperado e transformado num local onde as palavras mudas - ditas pelos olhos do biólogo Mia - deixam perceber um lamento ao excesso de intervenção planificada, que fez mirrar a exuberância dos canhoeiros e outras árvores.

Aos 19 (1974),como jornalista, cobrindo uma viagem de Samora Machel

A curta vida do jornalista António Leite

Em Março de 1974 - ainda na época da Faculdade de Medicina - António Emílio Leite de Couto decidiu estrear-se como jornalista no "Jornal de Notícias" (de Moçambique): "Como isto se passou antes do 25 de Abril resolvi assinar os primeiros textos como António Leite. O meu pai e o meu irmão mais velho, Fernando, também trabalhavam no jornal. O meu pai, hoje com 82 anos, era um poeta - que trabalhou durante muitos anos para os Caminhos de Ferro - já fazia a página local do jornal quando ainda vivia na Beira."

Mia Couto com o jornalista Carlos Cardoso (à esquerda), assassinado em Maputo em Novembro de 2000​

António Leite teve uma existência curta porque as mudanças políticas que começaram por acontecer na metrópole abriram a porta aos textos e crónicas de Mia Couto. A lentidão das comunicações e notícias fez com que "no dia 25 de Abril não tenha havido aqui uma percepção clara do que estava a acontecer. Ainda demorou uns dias", para que a história assumisse o curso da independência de Moçambique. Pelo meio, depois do chumbo, o estudante Mia trocou Medicina por Biologia e fugiu da cidade no golpe do 7 de Setembro de 1974: "Foi complicado. O meu pai estava a cobrir a Cimeira de Lusaka. Tive de estar uns dias fora, e o meu irmão Fernando também, e a minha mãe teve de se esconder."

A energia da independência transformou Mia em jornalista a tempo inteiro. O trabalho no "Notícias" - de que foi director - ocupou-lhe grande parte do tempo... apesar de o biólogo continuar a fazer umas escapadas para o mato. Andou por aldeias perdidas e inventou uma linguagem que resulta da integração de termos e crenças das línguas e populações locais.

MIA, com o cão Chocolate, a olhar para o rio Umbeluzi, que abastece a cidade de Maputo

"Os meus fantasmas estão todos na Beira"

Durante 15 anos percorreu o país de lés-a-lés mas nunca quis regressar à sua cidade natal: "Os meus fantasmas estão todos na Beira. Um dia, deu-se a circunstância de ter um grupo - que servia de almofada protectora - e resolvi ir. Quando cheguei, foi pelo ouvido que reconheci a cidade. As casas estavam todas lá, mas foi aquela maneira de falar português que me fez regressar".

Recuar até à memória da terra onde construiu o manual de cultura e sobrevivência que, em contínua mutação, o haveria de acompanhar vida fora. E sentiu saudades das grandes férias que duravam três meses, e em que ele e os amigos apanhavam o comboio da Beira para Manica: "Os meus pais não sabiam de mim durante dois meses. Não havia medo nem telemóvel. Chegávamos de madrugada e dormíamos na estação." Depois, no dia seguinte, iam procurar um sítio para acampar, acompanhados pelo silêncio da terra vermelha.

Mia Couto nos arredores de Maputo

Essas memórias haveriam de ser um instrumento precioso para a época em que o biólogo Mia foi convidado para dar aulas de Análise do Ambiente na Faculdade de Arquitectura de Maputo: "Um arquitecto deve saber tudo sobre a natureza, que é a primeira grande arquitecta. Levava ramos, galhos e bichos para as aulas. Os alunos gostavam, e eu também. Regressaria a isso com prazer." Mas não pode fazê-lo, porque a vida de empresário como sócio da Impacto (firma que realiza estudos de impacto ambiental) não lho permite: "A lei moçambicana obriga à realização de um estudo de impacto ambiental antes de tudo. O meu sócio que tinha funções mais burocráticas está doente, e tenho de o substituir. Mas antes tinha oportunidade de andar dias e dias pelo mato a percorrer o país. E como sempre trabalhei como escritor nas sobras - à noite, aos fins-de-semana e nas insónias - aproveitava esse tempo para escrever." Às vezes, na tenda, na companhia de um petromax, aproveitando as costas dos papéis onde tomava notas para os estudos de impacto ambiental.

Mia Couto a ver fotografias de Sebastião Salgado

Influências: de Maria de Jesus a Guimarães Rosa

Mia, aos 10 anos (1965), na Beira, com um leopardo bebé

Nessas andanças pelo país, ganhou o vício de comprar bancos de madeira para ver "desfilar as pessoas em flagrante viagem", como diz no conto. Por isso, tem uma colecção de pequenos bancos africanos, muito baixos, bambos apesar das três pernas, junto à mesa, também baixa, por onde espalhou dezenas de cópias de fotografias de Sebastião Salgado. "Estou a tentar fazer textos para as fotos", em resposta a um desejo do fotógrafo e um repto de uma editora alemã que vai publicar um álbum.

A alma poética talvez seja herança da mãe, Maria de Jesus, "contadora de histórias e verdadeira ficcionista. Isto teve uma grande influência na minha infância". Depois da independência, os pais fizeram vários ensaios de regresso a Portugal. Mas nunca se adaptaram.

Descobrimos Maputo pelo olhar de Mia, apesar da estranheza forasteira com que líamos os nomes das ruas: Avenidas Lenine, Mao Tsé-tung e Kim Il Sung, a par da Rua de Olivença. E assim fomos parar ao Centro de Estudos Brasileiros para o vermos proferir uma palestra sobre João Guimarães Rosa: "Esta manhã, quando abri o jornal, vi em grandes parangonas o anúncio da conferência. Sabia que a tinha de fazer - e preparei-a - mas não me lembrava que era hoje. Por vezes, o 'Notícias' é a minha agenda..." E lá falou do seu encontro com este vulto maior da literatura de língua portuguesa e do 50.º aniversário da publicação de "Grande Sertão: Veredas", que talvez seja a sua obra mais conhecida. Nos anos 80, "tinha uma grande curiosidade pela obra de Luandino Vieira e por aquilo que ele estava a fazer com a língua portuguesa. E assim senti que tinha de encontrar João Guimarães Rosa... um dos meus mestres".